Esta canção de Chico Buarque de Hollanda é provocadora. Partindo de vários "dizeres comuns", o autor convida a ouvir - e eventualmente a seguir - alguns "bons conselhos" que, ironicamente, se afastam da tradição popular. O povo ensina num sentido, o poeta ensina noutro.
O autor começa por nos convidar a ouvir o seu conselho: "Ouça um bom conselho, que eu lhe dou de graça.", ao arrepio do dito popular: "Se o conselho fosse bom, não se dava, vendia-se." Mas o autor considera que o seu conselho é bom, apesar de ser de graça.
E continua: "Inútil dormir, que a dor não passa.", entrando em confronto direto com a célebre frase "Dorme, que isso passa". Não, não passa, afirma o autor.
E avança para o terceiro conselho: "Espere sentado, ou você se cansa". Aqui, ao encontro do popular "Esperar sentado, que em pé cansa", ou ainda da conhecida expressão "Bem pode esperar sentado", adivinhando-se que a demora para alcançar o que se pretende será grande, ou a espera infrutífera.
E essa ideia é claramente expressa na sentença seguinte: "Está provado: Quem espera nunca alcança." Diz o autor… O povo diz que "quem espera sempre alcança". Quem persistentemente mantém a esperança na realização do sonho vê-lo-á realizado, diz o povo. Mas não é o que se diz na canção, não. Pelo contrário, quem espera sentado nada alcança: é a perspectiva do autor.
E, assim, Chico Buarque de Holanda parte para o convite direto: "Venha, meu amigo, deixe esse regaço, brinque com meu fogo, venha se queimar."
"Com o fogo não se brinca" ou "Quem brinca com o fogo, queima-se": sabem-no as crianças, literalmente, e os adultos, figuradamente. Mas o autor convida, ousadamente: "Brinque com meu fogo, venha se queimar."
E acrescenta: "Faça como eu digo. Faça como eu faço." Aqui avulta a coerência de quem convida a seguir o seu exemplo total: o da palavra e o da ação. E perde valor o dito popular "Olha para o que eu digo e não olhes para o que eu faço." Esta incoerência não existe na canção.
E o conselho continua, no registo da ousadia: "Aja duas vezes antes de pensar." Não, não é para seguirmos o dizer popular "Pensa antes de agir." Somos convidados a agir sem pensar, a agir mesmo duas vezes sem pensar.
"Atrás do tempo, tempo vem" diz o ditado popular, aconselhando-nos a calma, a serenidade da distanciação em relação ao que acontece. Não é esse o entendimento do autor: ele corre atrás do tempo, e acrescenta que "devagar é que não se vai ao longe", contrariando o célebre ditado "Devagar se vai ao longe".
E o final da canção, esse, consiste numa belíssima metáfora, que parte da conhecida frase "Quem semeia ventos, colhe tempestades".
Conclui Chico Buarque: "Eu semeio vento na minha cidade, vou para a rua e bebo a tempestade."
É o poder da poesia que, como vento semeado, altera toda a serenidade e provoca a tempestade de que o poeta se alimenta.
Não, o poeta não aceita as frases feitas: ele questiona-as, altera-as, recria-as. E nem o peso da tradição o assusta… O povo ensina num sentido, mas o poeta ensina noutro…
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por Maria Regina Rocha
"Ouça um bom conselho
Que eu lhe dou de graça
Inútil dormir que a dor não passa
Espere sentado
Ou você se cansa
Está provado, quem espera nunca
Alcança
Venha, meu amigo
Deixe esse regaço
Brinque com meu fogo
Venha se queimar
Faça como eu digo
Faça como eu faço
Aja duas vezes antes de pensar
Corro atrás do tempo
Vim de não sei onde
Devagar é que se não vai longe
Eu semeio vento na minha cidade
Vou para a rua e bebo a tempestade"
Chico Buarque
Esta canção de Chico Buarque de Hollanda é provocadora. Partindo de vários "dizeres comuns", o autor convida a ouvir - e eventualmente a seguir - alguns "bons conselhos" que, ironicamente, se afastam da tradição popular. O povo ensina num sentido, o poeta ensina noutro.
O autor começa por nos convidar a ouvir o seu conselho: "Ouça um bom conselho, que eu lhe dou de graça.", ao arrepio do dito popular: "Se o conselho fosse bom, não se dava, vendia-se." Mas o autor considera que o seu conselho é bom, apesar de ser de graça.
E continua: "Inútil dormir, que a dor não passa.", entrando em confronto direto com a célebre frase "Dorme, que isso passa". Não, não passa, afirma o autor.
E avança para o terceiro conselho: "Espere sentado, ou você se cansa". Aqui, ao encontro do popular "Esperar sentado, que em pé cansa", ou ainda da conhecida expressão "Bem pode esperar sentado", adivinhando-se que a demora para alcançar o que se pretende será grande, ou a espera infrutífera.
E essa ideia é claramente expressa na sentença seguinte: "Está provado: Quem espera nunca alcança." Diz o autor… O povo diz que "quem espera sempre alcança". Quem persistentemente mantém a esperança na realização do sonho vê-lo-á realizado, diz o povo. Mas não é o que se diz na canção, não. Pelo contrário, quem espera sentado nada alcança: é a perspectiva do autor.
E, assim, Chico Buarque de Holanda parte para o convite direto: "Venha, meu amigo, deixe esse regaço, brinque com meu fogo, venha se queimar."
"Com o fogo não se brinca" ou "Quem brinca com o fogo, queima-se": sabem-no as crianças, literalmente, e os adultos, figuradamente. Mas o autor convida, ousadamente: "Brinque com meu fogo, venha se queimar."
E acrescenta: "Faça como eu digo. Faça como eu faço." Aqui avulta a coerência de quem convida a seguir o seu exemplo total: o da palavra e o da ação. E perde valor o dito popular "Olha para o que eu digo e não olhes para o que eu faço." Esta incoerência não existe na canção.
E o conselho continua, no registo da ousadia: "Aja duas vezes antes de pensar." Não, não é para seguirmos o dizer popular "Pensa antes de agir." Somos convidados a agir sem pensar, a agir mesmo duas vezes sem pensar.
"Atrás do tempo, tempo vem" diz o ditado popular, aconselhando-nos a calma, a serenidade da distanciação em relação ao que acontece. Não é esse o entendimento do autor: ele corre atrás do tempo, e acrescenta que "devagar é que não se vai ao longe", contrariando o célebre ditado "Devagar se vai ao longe".
E o final da canção, esse, consiste numa belíssima metáfora, que parte da conhecida frase "Quem semeia ventos, colhe tempestades".
Conclui Chico Buarque: "Eu semeio vento na minha cidade, vou para a rua e bebo a tempestade."
É o poder da poesia que, como vento semeado, altera toda a serenidade e provoca a tempestade de que o poeta se alimenta.
Não, o poeta não aceita as frases feitas: ele questiona-as, altera-as, recria-as. E nem o peso da tradição o assusta… O povo ensina num sentido, mas o poeta ensina noutro…