Não sou marxista e não suporto conversa de esquerdóide. Mas se analiso a Terra como uma nave na qual uma reserva biológica está singrando o tempo em direção a um objetivo, eu sou obrigado a admitir que um modelo coletivo é necessário. Mas quem será líder de tal modelo? Aí é que está.
Eu não diria que o marxismo é ecológico porque ele foi traçado num tempo em que nem se pensava em ecologia. Mas eu diria que a visão ecológica do planeta exige uma postura coletivista.
O século XX acaba num cenário de crise geral mundial: o modo de produção capitalista estendeu-se a todo o planeta e sujeita progressivamente ao domínio da mercadoria todas as actividades humanas, mas, sem dúvida pela primeira vez na sua história, produz duas importantes degradações simultâneas.
A primeira é de ordem social pois, apesar de um crescimento considerável das riquezas produzidas, a pobreza e a miséria não recuam no mundo: 1,3 mil milhões de seres humanos dispõem do equivalente a menos de um dólar por dia, outros tantos não têm acesso a água potável e aos cuidados mais elementares, 850 milhões são analfabetos, 800 milhões são subalimentados, pelo menos 100 milhões de crianças são exploradas no trabalho, e durante os quatro últimos decénios, as desigualdades entre os 20% mais pobres e os 20% mais ricos em vez de 1 para 30 são agora de 1 para 80. Este desastre social toca mesmo os países mais ricos já que os Estados Unidos contam 34,5 milhões de pessoas que vivem abaixo do limiar de pobreza e os países da OCDE recenseiam 34 milhões de pessoas que sofrem de fome, uns 30 milhões reduzidos ao desemprego, e muitos mais ainda cuja situação se torna precária.
A segunda degradação importante diz respeito à natureza e aos ecossistemas gravemente atingidos ou ameaçados pelo esgotamento de certos recursos não renováveis e por poluições de toda a espécie. Além disso, a maior parte das opiniões científicas convergem no alarme quanto ao risco de aquecimento climático ligado às emissões de gás com efeito de estufa. A origem desta crise ecológica é sem dúvida o modo de desenvolvimento industrial conduzido sem outro critério de julgamento que não seja a rentabilidade máxima do capital investido, mas cuja legitimidade era assegurada pela ideologia segundo a qual o crescimento da produção e do consumo era sinónimo de melhoria do bem-estar de que todos os habitantes do planeta beneficiariam a mais ou menos longo prazo. Se pode dizer-se que a simultaneidade destes dois tipos de desastres, social e ecológico, não é fortuita, quer dizer, se eles são o produto do desenvolvimento económico impulsionado pela acumulação do capital à escala planetária, e, pior ainda, se eles são o seu produto necessário, então põe-se a questão do encontro da crítica marxiana do capitalismo e da crítica do produtivismo cara aos ecologistas. Ora não somente estas duas críticas nasceram separadamente, como ainda se desenvolveram amplamente uma contra a outra, na medida em que a primeira foi identificada durante toda a sua duração de vida com as experiências dos países ditos “socialistas” cuja desordem ecológica – como a social, de resto – não era inferior à dos países capitalistas, e onde a segunda hesitou durante muito tempo no reposicionamento das relações entre o homem e a natureza no quadro das relações sociais.
Todavia, a conjunção de três acontecimentos criou as condições de uma aproximação entre estas duas abordagens. Trata-se primeiro do desaparecimento dos (anti)modelos “socialistas” que prejudicavam a utilização da teoria de Marx para fins de crítica radical do capitalismo. O segundo acontecimento foi a liberalização completa do capitalismo, sob a batuta dos mercados financeiros tornados globais, que se saldou por uma inversão da relação de forças a favor do capital e em detrimento do trabalho. O terceiro acontecimento é a convergência das mobilizações populares e das lutas sociais contra os danos da mundialização capitalista, nomeadamente identificando com clareza as paradas das negociações no seio da Organização Mundial de Comércio: a recusa da mercantilização do mundo e da privatização do seres vivos contém em si o questionamento dos dois termos da crise que atinge sobretudo as populações mais desfavorecidas: social e ecológico.
Este último elemento – a luta social – não é o menor: por si só, ele funda a possibilidade de elaborar uma crítica teórica geral de uma crise que é ela própria global; por si só, ele justifica as pesquisas teóricas para ultrapassar uma oposição estéril e paralisante entre uma crítica marxista tradicional das relações sociais separadas das relações do homem com a natureza e uma crítica ecologista simplista das relações do homem com a natureza sem referência às relações sociais no interior das quais o homem põe em acção o seu projecto de domesticação da natureza.
Parecem pois reunidas as condições materiais para conduzir uma teorização materialista do conhecimento e da transformação das relações do homem com a natureza e isso em duas direcções: a da formulação de um materialismo naturalista e a da reinserção da ecologia política no seio de uma análise global do capitalismo, numa espécie de fecundação mútua de dois paradigmas. Contudo, um obstáculo de monta se ergue diante desta aliança: um novo paradigma só triunfa ocupando o lugar de outro. O mais verosímil é pois que a condição necessária do nascimento de uma ecologia política marxiana ou de um marxismo ecológico seja uma ultrapassagem completa e definitiva da forma tomada pelo marxismo tradicional enquanto movimento de pensamento e de acção inscrito num período histórico dado, aquele que, esquematicamente, se resumiu e reduziu à colectivização dos meios de produção sem que as relações sociais fossem minimamente modificadas. Inversamente, o pensamento da ecologia política não poderia aspirar ao título de novo paradigma se não lograsse integrar-se num conjunto mais vasto visando uma transformação social. Hoje, embora este duplo empreendimento esteja longe do seu termo, pode dar-se testemunho de um número importante de contribuições que vão no sentido de uma construção inovadora. Há aquelas que mostram que o materialismo pode, em certas condições, constituir a matriz conceptual da assunção da ecologia pela sociedade, e aquelas que definem, num outro sentido, as bases de uma ecologia desembaraçada da ilusão de um capitalismo limpo.
O marxismo se apresenta como uma supestrutura, capaz de racionalizar todos os campos do pensamento, no entanto era extrmamente dual ao propor o conflito de classes. Não é de se estranhar que no campo da ecologia haja também uma interpletação marxista. Lembrando que que a Igreja Católica, em parte, adotou o marxismo, via Teologia da Libertação, embora a mesma Igreja seja tida como ópio do povo. Na américa latina foi feita a leitura da obar de Keynes via marxismo, embora ele fosse liberal e capitalista.
Muita coisa foi dita e feita, a maioria desastrosamente, em nome do marxismo, pois este passou de uma leitura dialética do mundo em transformação, em determinado momento histórico, para a categoria de "religião" a ser seguida. O que se fez no marxismo pouco tem a ver com o ideário de Marx, que nunca estudou o socialismo, mas sim o capitalismo.
A humanidade pode viver sem baleias ou sem tartarugas, como aprendeu a viver sem dinossauros. O argumento de
alguns economistas marxistas é que é necessário defender a biodiversidade, não por razões utilitaristas, mas em nome de valores éticos ou estéticos. Ora, como é justamente a posição da maior parte dos ecologistas, a condenação pronunciada contra estes últimos invalida-se a si mesma.
Enfim, uma dificuldade considerável fica por resolver no rumo de um paradigma ecológico marxiano: que forças sociais são susceptíveis de gerar um projecto maioritário democrático de transformação da sociedade para avançar no sentido de maior justiça em relação às classes mais desfavorecidas e às gerações vindouras? avança prudentemente que os movimentos sociais são portadores da aspiração ecologista pois a polarização da riqueza agrava os saques sobre os recursos naturais e as reivindicações sociais visando melhorar as condições de trabalho, de higiene e de segurança obrigam os capitalistas a integrar certos custos sociais. Por outro lado, a dimensão internacional da luta anticapitalista pode encontrar um prolongamento na reivindicação universal de um planeta onde todos os seres vivos tenham condições para viver. Isso só se tornará realidade através da instauração de um direito mundial livremente consentido que seria um “direito a um uso igual.
Comments
Não sou marxista e não suporto conversa de esquerdóide. Mas se analiso a Terra como uma nave na qual uma reserva biológica está singrando o tempo em direção a um objetivo, eu sou obrigado a admitir que um modelo coletivo é necessário. Mas quem será líder de tal modelo? Aí é que está.
Eu não diria que o marxismo é ecológico porque ele foi traçado num tempo em que nem se pensava em ecologia. Mas eu diria que a visão ecológica do planeta exige uma postura coletivista.
Esta questão é muito complicada.
O século XX acaba num cenário de crise geral mundial: o modo de produção capitalista estendeu-se a todo o planeta e sujeita progressivamente ao domínio da mercadoria todas as actividades humanas, mas, sem dúvida pela primeira vez na sua história, produz duas importantes degradações simultâneas.
A primeira é de ordem social pois, apesar de um crescimento considerável das riquezas produzidas, a pobreza e a miséria não recuam no mundo: 1,3 mil milhões de seres humanos dispõem do equivalente a menos de um dólar por dia, outros tantos não têm acesso a água potável e aos cuidados mais elementares, 850 milhões são analfabetos, 800 milhões são subalimentados, pelo menos 100 milhões de crianças são exploradas no trabalho, e durante os quatro últimos decénios, as desigualdades entre os 20% mais pobres e os 20% mais ricos em vez de 1 para 30 são agora de 1 para 80. Este desastre social toca mesmo os países mais ricos já que os Estados Unidos contam 34,5 milhões de pessoas que vivem abaixo do limiar de pobreza e os países da OCDE recenseiam 34 milhões de pessoas que sofrem de fome, uns 30 milhões reduzidos ao desemprego, e muitos mais ainda cuja situação se torna precária.
A segunda degradação importante diz respeito à natureza e aos ecossistemas gravemente atingidos ou ameaçados pelo esgotamento de certos recursos não renováveis e por poluições de toda a espécie. Além disso, a maior parte das opiniões científicas convergem no alarme quanto ao risco de aquecimento climático ligado às emissões de gás com efeito de estufa. A origem desta crise ecológica é sem dúvida o modo de desenvolvimento industrial conduzido sem outro critério de julgamento que não seja a rentabilidade máxima do capital investido, mas cuja legitimidade era assegurada pela ideologia segundo a qual o crescimento da produção e do consumo era sinónimo de melhoria do bem-estar de que todos os habitantes do planeta beneficiariam a mais ou menos longo prazo. Se pode dizer-se que a simultaneidade destes dois tipos de desastres, social e ecológico, não é fortuita, quer dizer, se eles são o produto do desenvolvimento económico impulsionado pela acumulação do capital à escala planetária, e, pior ainda, se eles são o seu produto necessário, então põe-se a questão do encontro da crítica marxiana do capitalismo e da crítica do produtivismo cara aos ecologistas. Ora não somente estas duas críticas nasceram separadamente, como ainda se desenvolveram amplamente uma contra a outra, na medida em que a primeira foi identificada durante toda a sua duração de vida com as experiências dos países ditos “socialistas” cuja desordem ecológica – como a social, de resto – não era inferior à dos países capitalistas, e onde a segunda hesitou durante muito tempo no reposicionamento das relações entre o homem e a natureza no quadro das relações sociais.
Todavia, a conjunção de três acontecimentos criou as condições de uma aproximação entre estas duas abordagens. Trata-se primeiro do desaparecimento dos (anti)modelos “socialistas” que prejudicavam a utilização da teoria de Marx para fins de crítica radical do capitalismo. O segundo acontecimento foi a liberalização completa do capitalismo, sob a batuta dos mercados financeiros tornados globais, que se saldou por uma inversão da relação de forças a favor do capital e em detrimento do trabalho. O terceiro acontecimento é a convergência das mobilizações populares e das lutas sociais contra os danos da mundialização capitalista, nomeadamente identificando com clareza as paradas das negociações no seio da Organização Mundial de Comércio: a recusa da mercantilização do mundo e da privatização do seres vivos contém em si o questionamento dos dois termos da crise que atinge sobretudo as populações mais desfavorecidas: social e ecológico.
Este último elemento – a luta social – não é o menor: por si só, ele funda a possibilidade de elaborar uma crítica teórica geral de uma crise que é ela própria global; por si só, ele justifica as pesquisas teóricas para ultrapassar uma oposição estéril e paralisante entre uma crítica marxista tradicional das relações sociais separadas das relações do homem com a natureza e uma crítica ecologista simplista das relações do homem com a natureza sem referência às relações sociais no interior das quais o homem põe em acção o seu projecto de domesticação da natureza.
Parecem pois reunidas as condições materiais para conduzir uma teorização materialista do conhecimento e da transformação das relações do homem com a natureza e isso em duas direcções: a da formulação de um materialismo naturalista e a da reinserção da ecologia política no seio de uma análise global do capitalismo, numa espécie de fecundação mútua de dois paradigmas. Contudo, um obstáculo de monta se ergue diante desta aliança: um novo paradigma só triunfa ocupando o lugar de outro. O mais verosímil é pois que a condição necessária do nascimento de uma ecologia política marxiana ou de um marxismo ecológico seja uma ultrapassagem completa e definitiva da forma tomada pelo marxismo tradicional enquanto movimento de pensamento e de acção inscrito num período histórico dado, aquele que, esquematicamente, se resumiu e reduziu à colectivização dos meios de produção sem que as relações sociais fossem minimamente modificadas. Inversamente, o pensamento da ecologia política não poderia aspirar ao título de novo paradigma se não lograsse integrar-se num conjunto mais vasto visando uma transformação social. Hoje, embora este duplo empreendimento esteja longe do seu termo, pode dar-se testemunho de um número importante de contribuições que vão no sentido de uma construção inovadora. Há aquelas que mostram que o materialismo pode, em certas condições, constituir a matriz conceptual da assunção da ecologia pela sociedade, e aquelas que definem, num outro sentido, as bases de uma ecologia desembaraçada da ilusão de um capitalismo limpo.
Boa sorte.
O marxismo se apresenta como uma supestrutura, capaz de racionalizar todos os campos do pensamento, no entanto era extrmamente dual ao propor o conflito de classes. Não é de se estranhar que no campo da ecologia haja também uma interpletação marxista. Lembrando que que a Igreja Católica, em parte, adotou o marxismo, via Teologia da Libertação, embora a mesma Igreja seja tida como ópio do povo. Na américa latina foi feita a leitura da obar de Keynes via marxismo, embora ele fosse liberal e capitalista.
Muita coisa foi dita e feita, a maioria desastrosamente, em nome do marxismo, pois este passou de uma leitura dialética do mundo em transformação, em determinado momento histórico, para a categoria de "religião" a ser seguida. O que se fez no marxismo pouco tem a ver com o ideário de Marx, que nunca estudou o socialismo, mas sim o capitalismo.
A humanidade pode viver sem baleias ou sem tartarugas, como aprendeu a viver sem dinossauros. O argumento de
alguns economistas marxistas é que é necessário defender a biodiversidade, não por razões utilitaristas, mas em nome de valores éticos ou estéticos. Ora, como é justamente a posição da maior parte dos ecologistas, a condenação pronunciada contra estes últimos invalida-se a si mesma.
Enfim, uma dificuldade considerável fica por resolver no rumo de um paradigma ecológico marxiano: que forças sociais são susceptíveis de gerar um projecto maioritário democrático de transformação da sociedade para avançar no sentido de maior justiça em relação às classes mais desfavorecidas e às gerações vindouras? avança prudentemente que os movimentos sociais são portadores da aspiração ecologista pois a polarização da riqueza agrava os saques sobre os recursos naturais e as reivindicações sociais visando melhorar as condições de trabalho, de higiene e de segurança obrigam os capitalistas a integrar certos custos sociais. Por outro lado, a dimensão internacional da luta anticapitalista pode encontrar um prolongamento na reivindicação universal de um planeta onde todos os seres vivos tenham condições para viver. Isso só se tornará realidade através da instauração de um direito mundial livremente consentido que seria um “direito a um uso igual.